Cada sociedade tem suas hipocrisias, e uma das hipocrisias brasileiras é a ideia de que somos cordiais com a parcela negra da nossa população. Não somos. Basta prestar atenção – ouvindo nossos amigos negros, lendo relatos na internet, prestando atenção em como negros são tratatos cotidianamente para perceber a realidade da nossa não cordialidade.
Somos uma sociedade profundamente racista, e por racismo quero mesmo dizer preconceito de raça contra negros. Alguns brancos dizem: “mas ei, existe também o racismo contra os brancos”. Até existe. Eu mesma, mulher branca classe média de 30 anos, fui hostilizada por ser branca. Duas vezes na minha vida inteira. Vou comparar com o que presenciei nos últimos anos, e depois me venham falar de racismo inverso.
Sou professora de escola pública. Preciso dizer que a maioria dos meus alunos é descendente de pessoas que foram escravizadas? Vou falar então uma coisa que negros entendem bem, e que a maioria dos brancos classe média pouco presencia: existe uma hierarquia de cores de pele, e quanto mais negro você for, quantos mais traços negros e mais crespo for seu cabelo, mais você é diariamente alvo de bullying. Lembram que eu disse ter sido hostilizada duas vezes em toda a minha vida? Pois é, meus alunos sofrem bullying diariamente. E é diariamente mesmo, sou testemunha. Não pensem que apenas os brancos são algozes. Não. Mulatos também, aqueles que não querem se identificar com aqueles que foram historicamente colocados abaixo na sociedade e por isso mesmo não se cansam de alvejar a pele escura, o cabelo crespo alheio. Não pensem também que fazem isso necessariamente porque não gostam dos alvos. Ou porque são pessoas más. Fazem isso porque são bombardeados diariamente com o ensinamento de que tudo o que é negro – a cor, o cabelo, a religião – não presta, é inferior. Fazem isso porque infelizmente a ideia está naturalizada em parte de nossa sociedade “cordial”, a ideia de hierarquia em que o branco é melhor do que o negro.
Gostam, são amigos, compartilham a pelada, as fofocas. Em um momento estão trocando confidências, no momento seguinte estão cantando uma versão horrorosa de “Pelados em Santos” falando do cabelo “bombril” da amiga. Uma criança negra, com cabelo crespo, ouve isso diariamente dos amigos. Imagina o que ouvem fora do círculo de amizade. Continuando com os relatos de não querer se identificar com a sua própria raça, diariamente ouço coisas como “sou negro não, sou vermelho”. “Não gosto de preto!”, diz a mulata. Pergunto o porque. “Porque não gosto”. Sabe a garota do “cabelo bombril”? Uma das amigas que canta isso pra ela também é negra. Com o cabelo cortado bem curto, porque cantar pra amiga é uma coisa, cantarem pra ela é outra. E elas sempre estão juntas, me dando trabalho porque não param de fofocar a aula inteira. Uma amiga negra casou com um mulato. A família dele ficou decepcionada – ao invés de “embranquecer” a família, ele enegreceu. E o filho deles é lin.do. Não sei como estão as coisas agora, mas o início do casamente isso foi uma coisa que eles tiveram que passar. Essa mesma amiga? Já teve atendimento em loja negado. Sim, por ser negra.
Tudo isso relatado (e contei poucos episódios), certamente muitos prestarão mais atenção quando eu disser sobre isso, mera testemunha, do que se um negro disser as mesmas histórias. Porque se eu relato, sou uma branca indignada com a situação que os outros passam. Lindo pra mim. Se um negro disser, ele está com raiva, ou se fazendo de vítima, ou os dois. Calam a voz negra, desqualificam-na, e depois o nosso racismo é cordial. E ele é tão entranhado que pessoas que não gostam de racismo fazem isso de silenciar a voz negra, sem se tocar. Não adianta: não querer ser racista, ou machista, requer um olhar atento,vigilante, permanente. Nada impossível, mas difícil. Algo que sempre escorregamos. Mas que temos que tentar não escorregar. Pelo nosso bem, pelo bem de nossa sociedade.